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A prática de tortura e seus reflexos na improbidade administrativa

O Brasil carrega chagas históricas, marcas de um passado que muito define o seu presente e em boa medida molda o futuro. Os mais de trezentos anos de escravidão foram determinantes para a construção da desigualdade social do país que, a despeito de figurar entre as dez maiores economias do mundo, posiciona-se também entre as nações mais desiguais do planeta, segundo o índice de Gini.

Aqui, aextraordinária riqueza e a extrema pobreza se fazem presentes (quase) no mesmo espaço e têm muito a ver com umadívida antiga pendente de pagamento, mas também imprescritível.

A história de nosso país, ainda, é marcada pela tortura. Essa prática violenta e covarde foi normalizada durante a ditadura militar, como uma política de estado e jamais punida, a despeito da condenação sofrida pelo país na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH. Caso Herzog e outros Vs. Brasil – sentença aqui: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_353_por.pdf). Tipificada como crime na Lei 9.455/97, a conduta vinha também sendo punida como ato de improbidade administrativa, com fundamento no art. 11 da Lei 8.429/92.

O Superior Tribunal de Justiça, em julgado emblemático, reconheceu a natureza ímproba da conduta de submeter alguém à tortura no julgamento do REsp 1.177.910/SE, sob a relatoria do Min. Herman Benjamim, decidido pela Primeira Seção. Para o Tribunal da Cidadania, o “atentado à vida e à liberdade individual de particulares, praticado por agentes públicos armados - incluindo tortura, prisão ilegal e "justiciamento" -, afora repercussões nas esferas penal, civil e disciplinar, pode configurar improbidade administrativa, porque, além de atingir a pessoa-vítima, alcança simultaneamente interesses caros à Administração em geral, às instituições de segurança pública em especial, e ao próprio Estado Democrático de Direito”.

Firmou-se, assim, o entendimento segundo o qual a prática de tortura, além de crime, de infração disciplinar e da repercussão civil/indenizatória, configura ato de improbidade, porque viola os princípios da administração pública, conforme previsto na redação original do art. 11 da Lei de Improbidade.

Entretanto, com as modificações introduzidas pela Lei 14.230/91 (a nova Lei de Improbidade Administrativa) o tema voltou ao debate. Nesse particular aspecto, a redação atual da LIA passou a prever um rol taxativo de condutas consideradas ímprobas em razão da violação a princípios administrativos. E dentre elas não está a prática de tortura, como se percebe da leitura do citado artigo:

 

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:  

III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo, propiciando beneficiamento por informação privilegiada ou colocando em risco a segurança da sociedade e do Estado; 

IV - negar publicidade aos atos oficiais, exceto em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado ou de outras hipóteses instituídas em lei;   

V - frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros; 

VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com vistas a ocultar irregularidades;  

VII - revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço.

VIII - descumprir as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas. 

XI - nomear cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas; 

XII - praticar, no âmbito da administração pública e com recursos do erário, ato de publicidade que contrarie o disposto no § 1º do art. 37 da Constituição Federal, de forma a promover inequívoco enaltecimento do agente público e personalização de atos, de programas, de obras, de serviços ou de campanhas dos órgãos públicos.  

 

Perceba-se que o art. 11, de modo diverso do que se deu com os arts. 9º e 10, não usa a expressão “notadamente”, quando vai se referir às condutas ímprobas, para deixar clara a natureza exemplificativa do rol. Ao contrário, optou o legislador, claramente, por um modelo de taxatividade, tanto que adotou a expressão “caracterizada por uma das seguintes condutas”.

Presente esse cenário normativo, o STJ foi novamente chamado a tratar do tema, e decidiu que “a ausência de previsão da conduta em norma que faça expressa remissão à lei de improbidade administrativa impede o reconhecimento da continuidade típico-normativa” e, portanto, a prática de tortura não mais pode ser enquadrada como ato de improbidade administrativa. Para além disso, averbou – na linha da jurisprudência do STF e da própria Corte – que a alteração legislativa deve projetar efeitos retroativos, para alcançar os processos em curso.


Confira a ementa do julgado mais recente:

 

ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CRIME DE TORTURA. CONDENAÇÃO PROFERIDA ANTES DO ADVENTO DA LEI 14.230/2021. REVOGAÇÃO ROL EXEMPLIFICATIVO DO ART. 11 E INCISO I, DA LEI 8.429/1992. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA BENÉFICA AOS AGENTES PÚBLICOS ÍMPROBOS. TEMA 1199. JURISPRUDÊNCIA DO STF IMPÕE APLICAÇÃO RETROATIVA DA ALTERAÇÃO LEGISLATIVA INCLUSIVE PARA ATOS DOLOSOS. RECONHECIMENTO SUPERVENIENTE DA ABOLIÇÃO DA CONDUTA. IMPOSSIBILIDADE DE MANUTENÇÃO DA CONDENAÇÃO EM NORMA REVOGADA. AÇÃO JULGADA EXTINTA.

I. As alterações legislativas da Lei nº 14.230/2021 aplicam-se retroativamente aos atos dolosos de improbidade administrativa, desde que não tenha ocorrido o trânsito em julgado.

II. Com o advento da Lei 14.230/2021, a prática do crime de tortura deixou de constituir ato de improbidade administrativa em razão da revogação do rol exemplificativo previsto no art. 11 e incisos I e II, da Lei nº 8.429/1992.

III. A ausência de previsão da conduta em norma que faça expressa remissão à lei de improbidade administrativa impede o reconhecimento da continuidade típico-normativa.

IV. Agravo interno de Raul Bróglio Júnior provido para dar provimento ao recurso especial e extinguir a ação de improbidade administrativa por atipicidade superveniente.

V. Agravo interno do Ministério Público Federal não provido.

(AgInt no AREsp n. 1.909.025/RJ, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 18/12/2024, DJEN de 23/12/2024.)

 

A conclusão a que se chega, portanto, é no sentido de que, embora grave e criminosa, a tortura não mais configura ato de improbidade.

Talvez seja essa uma alteração normativa a ser reclamada, para que essa conduta seja tipificada na norma e receba, para além da reprimenda penal e do dever de reparação civil, as sanções típicas da improbidade administrativa.

Produzimos um vídeo no nosso canal no youtube sobre o tema, curto e objetivo: https://www.youtube.com/watch?v=vJMnSpo2NhI


           

 
 
 

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